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É com muito prazer que A Gentil Carioca convida para as primeiras exposições individuais de Agrade Camíz, Cibelle Arcanjo,
Herbert De Paz e Vinicius Gerheim, quatro jovens artistas que usam a pintura como suporte para abordar suas origens e identidades.
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Agrade Camíz | Abusada
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Agrade Camíz: teu nome tá no judas ou de suburbane para suburbane
O subúrbio é um inferno, disse-me-disse, nome no judas, roubo de fio, cerol nos olhos, chacota, bulling.
– Camila, olha essa roupa, esse cabelo, essa bunda!
Cadê o amor-próprio? A casa própria? O carro próprio? A vida própria?
Ônibus lotado. Trem lotado. BRT lotado. Nas festas, homens levam bebidas e mulheres, comidas. Cadê os filmes de arte? Cadê as exposições? Nas maleitas, reza cobreiro, benze figa pro travesseiro, sonha com a sorte. Que bicho que deu? Está tudo escrito nos muros. E as ruas, cheias de lazer e bougainvilles.
O subúrbio se cria sozinho, a mãe solo pede ajuda da vizinha, a criança leva as compras dos mais velhos, os adolescentes ajudam a empurrar carro enguiçado. Se o telhado furou, mutirão para colocar a laje. Se a filha debutou, salão de festa para valsas binárias, homem com mulher, mulher com homem. Que inferno!
Mas, de que importa a Agrade Camíz brotar no subúrbio e continuar mantendo as aparências? Não, as pinturas de Camíz atravessam a hipocrisia dos fatos, denunciam abusos infantis, colocam frases de alerta, explicitam. Em tudo, se vê o subúrbio. Inconformada, pode pixar as ruas.... Vou “firmar o pé na alteridade”, “marcar território”. Das moradias nos conjuntos habitacionais, Agrade pinta os retratos dos abusos velados: a criança desrespeitada, desacatada. De quem é a culpa? Aquaplay de piroca. Gritar para quem?
Soltar-se de seu próprio corpo, soltar o corpo e falar. Fazer da pintura o corpo, da tinta, tatuagem, inscrição. Escrever ou pintar, tanto faz. “Porém um pouco tarde”. “Afinal, um pouco de cada”. Fazer pintura apelativa. A-p-e-l-a-t-i-v-a. Borrar, sujar, escorrer, tornar-se inteligível, foda-se o conceitual. “Nessa casa, moram outras intenções ou intensidades”.
Observar a construção de Agrade Camíz é perceber a necessidade de atravessar os muros do amor e da denúncia, da subjetividade e da memória. Sair de um subúrbio idílico e bucólico que jamais existiu. Chegar a outras portas da cidade, outras grades. Mas, chegar causando, frustrando as expectativas de quem espera as cores e escrever para que se possa sonhar pelo amor-próprio, como sorte, reza, fitinha no pulso. “Saco cheio de mundo”.
Marcelo Campos
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Cibelle Arcanjo | Muvucas
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Muvucas
A série Evocação da artista Cibelle Arcanjo se acerca de uma muvuca de sementes que se tornam floresta. A muvuca, tecnologia indígena para o plantio de espécies nativas de crescimentos rápido, médio e longo, se faz tendo em vista a pluralidade das plantas, as associações interespecíficas e o exercício dos estados intermediários e da mediação. Na sabedoria da muvuca, é necessário reconhecer a partilha de nutrientes entre distintas espécies, bem como os papéis dos ciclos de morte e de vida de plantas de crescimento médio ou rápido na proteção do solo e no estímulo das plantas de ciclo longo.
Tal qual a muvuca, os estados intermediários e as associações harmônicas “entre-seres” se fazem presentes na produção de Cibelle. Nas obras Sopro, Guardião e Roda, gira, círculo, volta, o corpo é o canal de conexão com as raízes, folhas, seres viventes, entidades, orixás, ar, água, fogo, estrelas e planetas. Tais elementos podem ser entendidos como “o que está ao redor” ou “o ambiente”, mas prefiro trazê-los, provocada pelas imagens, como “o que atravessa” e é “meio inseparável do ser”.
Os ciclos de morte e de vida das plantas, em colaboração, provocam a noção de morte da tradição judaico-cristã. A morte bem vivida pode gerar vida, ser criação. Epá Babá! Em Criação, Cibelle aguça sua fatura tornando-se rendeira. Na tela, a renda se funde com a arquitetura dos morros, as contas ganham vida e a imagem recebe uma luminosidade celestial. Por outro lado, nas obras Dar corpos às nossas lágrimas, deixar fluir o nosso sangue e Colheita na floresta, a artista recusa a obliteração dos ecocídios, genocídios e epistemicídios coloniais. Em Colheita na floresta, a bala disfarçada de semente vem lembrar das falsas promessas de desenvolvimento do agronegócio.
A contrapelo das mono culturas, as telas Busca em sussurros, Sinergia e Cruzeiro do Sul trazem as lições de enxergar no escuro e aprender no silêncio e na dúvida. Com o manejo da saturação digital da cor nas pinturas, Cibelle evoca o mecanismo biológico de adaptação das retinas à luz. Convida, assim, a sensibilizar o olhar; a saber confundir contas com sementes.
Por Joyce Delfim1
1 Pesquisadora, curadora e educadora em arte. Mestre em Estudos Avançados em História da Arte pela Universidade de Salamanca e doutoranda em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia.
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Herbert De Paz | Ibirapema
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Ibirapema: ‘esto de pelear con los cristianos no es como comer tortillas’1
Cada vez mais, o modo como os cânones são operados no campo da história da arte buscam possibilidades de (re)elaboração de passados, através de um posicionamento crítico ao tradicional regime de circulação de imagens. Na pesquisa do artista salvadorenho Herbert De Paz, os processos coloniais de interpretação artística e cultural são dissolvidos na decupação de rudimentos de uma episteme euro-cristã. Suas pinturas revelam silhuetas insurgentes, figurando um complexo campo de disputa discursiva frente aos modos socialmente gerados de ver e habitar o mundo.
Imagens de Rugendas, Sá, e de Bry são desordenadas junto aos Cucumbis que dançam pelas ruas do Rio de Janeiro no século XVIII, uma ode aos corpos não normatizados que escapam da subjugação, através da dança como motor de liberdade e insurreição. Aludem ainda a uma manifestação popular das Américas, ordenada pela representação dos conflitos de conversão entre Mouros e Cristãos, a dança dos historiantes, dança que foi perpetuada pelos missionários nas Américas, contribuindo com a imposição do cristinanismo como único caminho aquém da aniquilação.
Leda Maria Martins, nesse sentido, propõe o entendimento do corpo como um portal de sabedoria, onde a partir da performance corpórea se atravessa o tempo2, logo pensar a história para além da colonialidade exige atenção aos veículos transtemporais de manutenção de vida. Nestas obras, vemos transbordamentos entre evangelização e dança, trabalhados a partir de episódios onde as Américas, e os corpos que habitavam estas terras, se afirmam enquanto movimento pulsante de um baile em meio à guerra. Se a colonização empreendida pelo Estado e pelo Clero elaborou complexas estratégias de dominação, a ibirapema3, metamorfoseada como pincel, interrompe a continuidade da catequização de nossos imaginários. Nesse sentido, Herbert De Paz entende a linguagem pictórica como um dos eixos possíveis de prefiguração do mundo, afirmando propostas estéticas em oposição às imagens orientadas por métodos interpretativos e fundados a partir de espectros traumáticos e violentos.
Aldones Nino4
1 Trecho retirado de La Historia de Carlos Magno, segundo a transmissão oral, do artigo do filósofo salvadorenho Reynaldo Antonio Rivas: Los historiantes de Huertas: La danza de los Moros y Cristianos (2021), na Revista de Museologia Kóot, ano 11, n°12, p.71-87.
2 MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. In: Língua e Literatura: Limites e Fronteiras. Revista do Programa de Pós-graduação em Letras, n. 26 (Jun. 2003), p.75
3 Ibira-pema, ivirapema, ivirapeme, tacape ou tangapema era o porrete de madeira com o qual os tupis, que habitavam a maior parte do litoral brasileiro no século XVI, matavam seus prisioneiros de guerra.
4Historiador da Arte, Assessor de Formação e Educação do Instituto Inclusartiz (Rio de Janeiro, Brasil) e Curador Adjunto de Collegium (Arévalo, Espanha).
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Vinicius Gerheim | Primeiras Estórias
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Os fenômenos dos tempos entre as grandes lacunas de viver e morrer são ações dos nossos sentidos, das sensações que encarnam os ciclos, das emoções que conduzem as percepções e as vivências que figuram as nossas existências. Em Primeiras Estórias, série de pinturas de Vinícius Gerheim, são ressaltadas as relações espontâneas entre sensações de naturezas diversas interligadas por ações de memória, intuição e imaginação do artista. A infância nas montanhas das Minas Gerais, abafada pela atmosfera de extrativismos e perdão, é elaborada no esforço de refutar os projetos de fragmentação da vida executados pelo cistema heteronormativo das institucionalidades Olhos que alimentam e vigiam, alguns sangram para começar a brincar, outros já protegem mordendo." Formas, ritmos, vibrações e simpatias compõem relações de forças que criptografam sua própria existência. São pinturas que desordenam as fronteiras do público e do privado ao agenciar os limites da linguagem e do próprio ser. Eu sinto, ao presenciar as telas caminhadas por gestos de tinta de Vinicius, um chamado ao imbricamento profundo com os ciclos da vida, simbióticos, afetados pelas interligações constantes que somos capazes de sentir ao estarmos dispostos. Intensifica-se o fim, amplia-se os limites, cava-se mais um pouco, quando se tem consciência da finalidade dos seres e das coisas, se vive os intervalos com maior paixão.
Walla Capelobo11 Pesquisadora e artista afrotransfeminista e anticolonial. Formada em História da Arte (EBA/UFRJ) e mestranda no PPGCA (IACS/UFF). Colaboradora em desculonizacion e CIPEI (México - Brasil).
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Agrade Camíz
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Cibelle Arcanjo
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Herbert De Paz
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Vinicius Gerheim
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Agrade Camíz | Cibelle Arcanjo | Herbert De Paz | Vinicius Gerheim
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