Aleta Valente é uma artista que afronta estereótipos. Ativista, usa a internet, o humor e as câmeras de celular há anos, explorando profundamente a dinâmica e a interatividade das redes sociais, onde causa furor e atrai tanto ódio quanto seguidores.
Seu trabalho mais conhecido é o avatar Ex Miss Febem, personagem que encarna em fotos e textos curtos em redes sociais desde janeiro de 2015, e que saiu do ar em janeiro de 2017 por ter recebido grande número de denúncias de outros usuários dessas redes, com suas regras de uso extremamente pudicas sobre a exposição do corpo humano.
O nome Ex Miss Febem foi tirado do refrão da música Kátia Flávia, de Fausto Fawcett. A moça bonita e gostosa aparece em selfies nas mais diversas poses, muitas delas supostamente sensuais, só que em cenários nada glamourosos, muito pelo contrário. Ela pode lamber a axila não depilada num vagão de trem, mostrar absorventes íntimos ensanguentados ou vestir como abadá uma camiseta com a marca Cytotec, o remédio com efeito abortivo que no Brasil só os hospitais têm direito de comprar.
Antes de se considerar uma artista visual, Aleta fez cinema. Foi personagem do documentário de Eduardo Coutinho intitulado Jogo de Cena (2007), em que mulheres contam suas histórias de vida e atrizes interpretam a seu modo essas histórias, borrando as linhas que separam ficção de realidade. Aleta entrou com seu depoimento e também foi interpretada por Fernanda Torres.
“Todo o desdobramento, de ver as pessoas na première rindo ou fazendo comentários, foi muito brutal. Tudo do que eu queria me distanciar estava explícito ali: vulnerabilidade, pobreza, desespero, medo da loucura… Mas isso me abriu para entender também como eu represento a mim mesma”, disse Aleta à seLecT.
Depois foi atriz em dois filmes de Domingos de Oliveira, em que fez papéis de empregada e prostituta. “Foram os papéis que me couberam”, diz. “Nunca me senti confortável como atriz. Entendi que não era isso que eu queria: ficar de marionete de homem, emprestando meu corpo, porque é arte e ele está pensando através do seu corpo”, argumenta.
Aleta Valente foi aluna da UFRJ em duas temporadas, sem ter conseguido se formar. Era uma adolescente grávida quando prestou vestibular pela primeira vez. Queria fazer cinema, mas achou que tinha mais chances de entrar em Educação Artística, habilitação Artes Plásticas. “Desenho nunca foi meu forte, mas eu gostava de estudar a teoria da coisa. A dificuldade é que era curso integral.”
Jubilada, fez vestibular de novo para História da Arte, mas nunca se formou. “Se você é mãe, se trabalha, você não tem tempo para mais nada. É carcerário o modelo. Minha vida tem altos e baixos. Tem uns anos que passei dormindo, não sei bem o que aconteceu”, conta, mencionando o histórico de doenças psiquiátricas na família.
Ela também estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e fez residência no Museu Bispo do Rosário e no Capacete, onde conta ter aprendido a falar inglês. Em 2015, criou uma residência artística em sua própria casa, em Bangu, na qual já recebeu artistas em duas temporadas de duas semanas cada.
Subúrbio
Bangu é um dos bairros mais populosos do Rio, o mais distante do mar e o mais quente. O ícone histórico do bairro é a Fábrica de Tecidos Bangu, maior e mais moderna unidade industrial do Rio, orgulho nacional e onde trabalhou como operária uma avó de Aleta Valente. A Fábrica, conhecida pelos tecidos de alta qualidade, funcionou ali de 1889 a 2005, sendo responsável por transformar uma área rural em espaço urbano. Desde o ano passado, seu prédio abriga o Shopping Bangu.
Em 1987, foi criado no bairro o complexo penitenciário que já hospedou bandidos de todos os quilates, entre eles os ex-governadores do Rio Sérgio Cabral e Anthony Garotinho. Não adiantou o decreto de 2004 desmembrando de Bangu a área do presídio e do lixão. As unidades do hoje Complexo Penitenciário de Gericinó, no novo bairro de Gericinó, continuam sendo chamadas de Bangu 1, Bangu 2, Bangu 3A, Bangu 3B e até Bangu 10.
Daí as piadinhas que Aleta Valente tem de aturar. “Cresci em Bangu, circulando pela cidade, e a galera sempre perguntando se em Bangu eu estava na condicional, se o meu regime era semi-aberto, gatinho perguntando se podia fazer visita íntima, o caralho!”, disse Aleta em uma de suas primeiras histórias no Instagram este ano.
“Artistinha da zona sul performando pobreza, presa para sempre dentro de sua própria performance”, disse, dando a impressão de estar lendo mais um comentário acusatório escrito sobre ela na internet. “Uma época, eu namorava um boy e o comentário era que eu pegava um boy de zona sul para ter onde dormir. E agora eu sou zona sul fantasiada de suburbana. Vocês têm que se decidir”, diz ela, convidando o ouvinte a pegar trem, ônibus, metrô e Kombi para fazer as acusações cara a cara em Bangu, em vez de se esconder no conforto da internet.
“Tô fazendo piada assim, mas não está tranquilo, não está leve pra mim. Ano passado foi muito escroto”, desabafou. “Meio que tá liberado no Rio de Janeiro a pessoa entrar, pichar meu trabalho numa exposição e sair aplaudido. O nome disso é bullying mesmo, é hate mob”, disse. “Não é a coisa mais agradável do mundo ter uma galera te chamando de racista dentro do próprio circuito da arte. A evidência seria que usei turbante, que usei trança”, disse ela, filha de uma família multirracial.
“Já fui acusada de fetichizar a marginalidade, porque não existe Miss na Febem. Soa engraçado as pessoas se perguntarem se existe vida inteligente numa periferia. E a pessoa, quando se referiu a mim, me citou como ‘artista periférica’ com muitas aspas!”
Aborto e falsificação
Como a Organização das Nações Unidas, que equiparou a proibição do aborto à prática de tortura contra mulheres, Aleta Valente é pró-aborto. Em exposição coletiva no Instituto Tomie Ohtake, no ano passado, Aleta pôs na parede um grande cartaz, onde se lia: “Vamos falar sobre o aborto”, seguido de um número telefônico que atendeu por 24 horas. Mãe solteira na adolescência, Aleta não teve o aborto como opção e escondeu o quanto pôde a gravidez, até ser obrigada a enfrentar uma vida de privações e repreensões. Hoje, com o punho recém-operado depois de um acidente quando ensinava a filha adolescente a andar de skate, ela diz que virou “doula de aborto”. É trabalho voluntário, que consiste em dar informação e apoio psicológico a meninas e mulheres que querem abortar e não têm os R$ 8 mil que cobram em clínicas clandestinas.
Maternidade, marginalidade e o horror a que as mulheres estão expostas num sistema que não respeita especificidades também aparecem em Barbara, trabalho de 2016. Aleta interpreta uma presa que saiu do isolamento com o bebê no colo e o cordão umbilical ainda no útero, conforme aparece em um relatório da prisão de Bangu de 2015.
Antes de se reconhecer como artista, Aleta foi montadora, monitora e assistente de artista. Os registros mais antigos da sua obra são de 2013, como o site specific que criou para uma bienal ocorrida enquanto estudava na UFRJ. Sua performance consistia em falsificar diplomas de graduação em Belas Artes, com carimbo e direito a fotos registrando a entrega do canudo aos alunos paramentados. Da mesma época é MoMAcumba, trabalho em que Aleta emula um Ebó com galinha congelada, pacote de cigarros light, maçãs, farofa, velas, cachaça e fotos da fachada do Museu de Arte Moderna de Nova York, com o desejo expresso de entrar no templo em que se transformou o museu.
Um projeto de 2016 foi chamado de Venha Se Despir de Suas Vergonhas, dentro do projeto Permanências e Destruições, com curadoria de João Paulo Quintella. O local foi a Ilha do Sol, na Baía de Guanabara, que já foi um refúgio naturista até ser abandonado depois do assassinato brutal de sua fundadora, Dora Vivacqua, mais conhecida como Luz del Fuego, famosa por fazer performances nua com cobras. Ali Aleta criou um estúdio fotográfico e por dois dias realizou e estimulou performances registradas em Pollaroid, que eram distribuídas aos participantes.
Constructo misógino
Gênero e raça para ela são construções sociais. “Hoje, eu sei que minha mãe é negra e meu pai é branco, só que não foi assim que eu vi a vida inteira, apesar de meu pai ser mais claro e minha mãe ser dois tons de pele acima do meu e ter aquele cabelo mais crespo. Alisei cabelo a vida inteira – fazia touquinha –, que loucura. Parei dois anos atrás. Eu tenho como me disfarçar de branca, sei que estou nesse lugar”, diz ela.
Quanto a gênero, “é um conjunto de normas sociais que vão garantir ao macho a subserviência da fêmea. Quando a gente nasce e furam a nossa orelha, isso se chama um marcador social, você já é marcada como pária, você vai ser tratada de forma diferente desde o seu nascimento. Meninas morrem muito mais sufocando, aspirando coisa, porque a cultura diz que você tem de enfeitar a menina. Tem fetocídio de fêmea. Tem um bando de mutilação digital. Aqui é o mercado da cirurgia plástica, que é mutilatório e cai sobre o corpo da mulher brutalmente. O Brasil é campeão de vaginoplastia, ninfoplastia, correção dos lábios. É uma demanda criada por pornografia mainstream, essa infantilização dos corpos da fêmea. A gente sofre essa influência dos corpos midiáticos. A gente se mede por esses outros corpos. Um constructo completamente misógino, masculinista. Gênero é isso”, diz ela.
Nos últimos anos, Aleta foi chamada para participar de encontros sobre questões de gênero. Ao falar de sua carreira no cinema e na arte, foi hostilizada. “Tentei falar de maternidade como marginalidade e me disseram que maternidade era privilégio cis. Que não concluí a faculdade porque não quis”, desabafa.
“Meu trabalho é confrontar as formas de representação mainstream do corpo da mulher, um corpo sempre asséptico, depilado e passivo. Esse lance de pudica é foda. Mas pornografia não tem pudor e nem por isso é feminista. Acho que, quando cai nessa coisa de vadia ou moça de família, em ambos os lados há uma desumanização da mulher. De um lado, ela é um bem privado. Do outro, é uma propriedade pública. Eu falo porque não tenho amarra com instituição, não tenho amarra de trabalho, trabalho amassando limão na noite. Posso falar de assédio extensivamente. Já sofri abuso dentro do circuito da arte e continuo sofrendo.”