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O artista traz como projeto o videoclipe do rap Ladainha do Morto, poema de Gerardo Mello Mourão, musicado e gravado por Cabelo para a obra Luz com Trevas, que envolve um disco, um show e uma exposição.
O roteiro é baseado em seu texto O DesMoisés, escrito para o projeto Crab Nebula, realizado com Lilian Zaremba e Tunga, para o evento "100 dias - 100 convidados" na Documenta X, Kassel, Alemanha, 1997.
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O DesMoisés
Final de tarde. No cemitério de uma pequena cidade serrana a multidão está reunida para o enterro de um homem. Como uma lenta cobra negra, se insinua pelas estreitas vias entre as sepulturas. Parentes, amigos e desconhecidos acompanham morto em direção à cova. RUMOR DE VOZES, CONFUNDE-SE COM O VENTO.
Um vento quente traz o rebanho de nuvens pesadas que se acumula sobre a cidade. Trovoadas e relâmpagos anunciam a tempestade. Uma pesada tromba d’água se precipita.
A chuva inunda a cova, impossibilitando o enterro. Um raio atinge a cruz de uma sepultura. Tomada pelo pânico a multidão abandona o cemitério.
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NOVO RUMOR DE VOZES, QUE VAI SE CONFUNDINDO COM A VOZ DE MUITAS ÁGUAS.
O nível do rio subiu tanto que o cemitério ficou submerso. Como ilhas, apenas algumas cruzes de uns três ou quatro mausoléus.
Abandonado, flutua o caixão, sendo levado pela correnteza, rio abaixo, acompanhado por galhos e todo tipo de lixo flutuante.
Voz: A pedra que está no rio está na sua alma.
Num choque com uma pedra abre-se a tampa do caixão, revelando o morto à noite, e a noite ao morto, mergulhado na quietude, o semblante enigmático, acompanhando as águas em sua sede de chegar ao mar.
Já é noite e o céu se abre.
Algumas pessoas retornam ao cemitério, mas não encontram o féretro. Inicia-se a busca sem sucesso.
Enquanto isso, a favor da gravidade, desce o esquife, arca de um bicho só, Noé povoado por milhares de microorganismos e esvaziado do pneuma, o sopro vital. Brilha a Via Láctea sobre seus olhos cerrados. A Via Láctea, a grande cobra branca.
Segundo os Incas, o grande rio do céu de onde o deus do trovão retira água pra enviar chuvas à terra.
Segundo outras crenças, o caminho das almas que passam para o além, em cuja a extremidade encontra-se o país do mortos.
Um cão acompanha pela margem o trajeto do caixão-barco.
Ouvi dizer que o morto era uma mistura de poeta e inventor, criador da máquina de ordenhar constelações. Dizia que era preciso tatear a escuridão até retirar de suas tetas a líquida luz; processo prazeroso e ao mesmo tempo exaustivo: a safra, magra, porém preciosa. Numa noite de boa colheita retira-se quase meio copo do leite, que, por processos alquímicos, pode ser convertido em pequenos cristais.
No alto do céu, como um cálice, brilha a meia lua. Morada e fonte da vida, reservatório de ambrosia, o licor divino, a bebida dos deuses.
A lua que controla as marés, as águas que circulam o universo e mantém vivas as criaturas.
Água, seiva, leite, esperma, sangue: diferentes estados de um único elixir. O orvalho e a chuva transformam-se na seiva vegetal, e está no leite da vaca, que se transforma em sangue: fogo líquido.
Voz: Este mundo, o mesmo em todos, nenhum dos homens, nenhum dos deuses o criou, mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.
Já quase de manhã, surgem os primeiros mugidos das vacas. Com um espelho sonoro, também inventado pelo morto, pode-se ouvir a imagem invertida do som do mugido, que, dizia o poeta, ser bastante parecida com o som primordial da Criação.
Passa silencioso o caixão pela espuma, bolhas de sabão e ecos das conversas das lavadeiras. Enquanto isso, ruminam as vacas. Comem capim, produzindo grande quantidade de excremento.
Até pouco tempo não havia utilidade para tamanha quantidade de merda. Agora é oferecida como alimento para as minhocas, em canteiros onde, em 45 dias, esses anelídeos convertem tudo em húmus. Um excelente adubo orgânico.
Quando usado nas plantações, hortas e pomares, os frutos nascem viçosos e em abundância. Tal procedimento já chegou ao centros urbanos, onde muitos cidadãos já são capazes, como minhocas, de converter em húmus os dejetos materiais e imateriais da civilização.
Voz: Pode você ouvir as explosões das sementes brotando nas fendas de concreto? Sentir o cheiro da erva que se espalha pela cidade?
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O Sol se levanta. Um buquê de borboletas escolta agora o caixão, que acaba por atolar nas areias da praia de um povoado. É um lugar chamado “Dois Rios”, onde os habitantes vivem da pesca e da agricultura de subsistência, em péssimas condições sanitárias. Assim, grande parte da população acaba sendo infestada por vermes, entre eles o verme amarelão, cientificamente denominado Ancylostoma Duodenale.
Outro verme muito comum na região é a Ascaris Lumbricoides, popularmente denominada lombriga. Uma fêmea grande pode conter sete milhões de ovos e expelir duzentos mil ou mais, em 24 horas.
Os vermes algumas vezes migram para a boca ou nariz de um indivíduo ou penetram em sua parede intestinal, invadindo outros órgãos, causando moléstias sérias ou mesmo a morte do hospedeiro. Há pouco tempo, uma criança expeliu pela boca uma lombriga de um metro de comprimento.
Infestadas pelos vermes as crianças podem ter seu crescimento físico e mental retardado, e pessoas de todas as idades, com muitos vermes, tornam-se anêmicas, sua energia diminui e a suscetibilidade à outras moléstias aumenta.
O indivíduo sofre de cólicas, diarréia, fraqueza, ranger de dentes, mau humor e, algumas vezes, perda momentânea da visão. Este último sintoma vem despertando o interesse de pesquisadores que passam por Dois Rios: no começo ocorre o turvamento da visão, como se uma névoa negra se instalasse, levando o paciente à cegueira.
Tanto o verme do amarelão como a lombriga possuem o corpo cilíndrico e alongado, pertencendo a classe dos “Nematodos”, palavra originária do grego “nematos”, que significa “fio”.
A origem desta palavra pode ser uma das chaves do mistério do turvamento da visão (apelidado também de transe do capuz), pois o simbolismo do fio é essencialmente o do agente que liga todos os estados da existência entre si e ao seu princípio, que liga este mundo e o outro mundo e todos os seres.
Os indivíduos privados da visão, desenvolvem os outros sentidos, e são dotados da capacidade de ter visões, e captar vibrações e vozes provenientes do futuro, presente e passado.
Voz: O vento que traz a semente da fecundação é também o que traz a voz dos mortos.
Assim, nesse pequeno povoado de pescadores, proliferam-se os poetas-profetas, transmitindo à população a experiência de seus delírios sonoros e visuais. Um deles já havia previsto a chegada do morto algumas semanas antes.
Uma dúzia de pessoas, entre homens, mulheres e crianças, estão reunidas em volta do caixão. Antes que mais gente chegue, retiram de seus bolsos um relógio ainda trabalhando, marcando seis horas de diferença da hora local. Nos outros bolsos encontraram um canário, pássaro de belo canto e penas amarelas, miolos de pão, sementes de algum fruto e uma estatueta de ferro com forma de um focinho de cão.
Um dentista chega a tempo de retirar as obturações de ouro da boca do defunto. Os habitantes despem-no de seu terno, batizam-no de “Moisés” e colocam o caixão novamente sobre as águas do rio.
Sob forte sol, o corpo nu do defunto torna-se vermelho como brasa e, antes do cair da tarde, à foz do rio bifurcada como língua de serpente, aquela nau-caixão desvia por um dos lados e encontra a água salgada.
Devido ao calor, o corpo acelera o seu estado de putrefação, exalando por suas narinas vapores que, momentaneamente, tomam a forma de um cavalo-marinho. A imagem, vista por ninguém, se dissolve, um segundo antes de uma onda precipitar, virando o caixão.
Um peixe rapidamente engole o olho direito do morto, uma gaivota mergulha e captura o peixe. O olho dentro do peixe, o peixe dentro da gaivota, a gaivota na atmosfera a dezenas de metros do nível do mar.
Voz: Imaginaria o morto que voaria a tal altura sem o auxílio de máquina alguma?
O olho esquerdo agora na barriga de uma garoupa, uma perna na boca de um cação, a cabeça criando limo e os miolos pinçados por caranguejos. O resto do corpo afunda nas águas profundas, partindo para o longo descanso, compartilhado pelos cardumes, alimentando peixes que alimentarão homens.
Cai a noite e continua vivo na memória dos vivos. Alheio a tudo dilui-se, dissolve-se na água, princípio de todas as coisas.
Voz: Já não existem imagens da terra, vês? Quem vê? Quem ouve? As incessantes imagens do estelar, lá na mais intocável distância.
Passa-se o tempo... Numa manhã, à beira da praia, pescadores conversam, quando, de repente, avistam uma grande onda, e nela, uma homem nu, surfando um caixão longboard, até chegar à areia.
Cabelo, Maio de 1997.
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Ladainha do Morto no Programa do Jô: https://globoplay.globo.com/v/3587334
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"Pra começar eu não me pertenço.
Sou cavalo do mundo.
Veículo da poesia.
E nessa condição sou muito mais um “que “do que um “quem”.
Isso que chamam Cabelo não é um só, mas vários,
como os cabelos que nascem na cabeça.
Sou possuído por entidades, energias,
que agem em conjunto ou separadamente.
Como um ou dois times de futebol.
A combinação dessas forças guia o corpo,
essa espécie de espaço-nave,
ou polvo, que podemos chamar de agoramóvel,
imerge em diferentes densidades,
navegando o instante.
Assim vai a flecha.
Ao longo de seu curso, sua tripulação, seus tentáculos,
coletam o que encontram
e dispõem sobre o convés:
presentes pescados no fluxo sem leito."
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Artista brasileiro, vive e trabalha na cidade do Rio de Janeiro. Cabelo é poeta, músico e artista plástico. Considera seus desenhos, pinturas, esculturas, canções, performances, vídeos e instaurações, como manifestações da poesia. Segundo Luiz Camillo Osorio, “essas várias linhas de força de sua poética têm como foco um acontecimento expressivo sempre marcado pela presença contundente do corpo”. A obra acontece tanto num museu quanto na rua. Atualmente segue com o projeto Luz com Trevas: uma exposição, um show e um disco, que se misturam formando uma só obra.
[Saiba mais: https://cabelo.etc.br/]
Em 2019 foi um dos finalistas do Prêmio Pipa, e realizou sua exposição na Villa Aymoré, além de participar das exposições coletivas “Da linha, o fio”, no Espaço Cultural BNDES, Rio de Janeiro, no Festival Multiplicidade 2019: Brasis, Centro Cultural Oi Futuro e participou da coletiva "O que não é floresta é prisão política" na Ocupação 9 de Julho do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), São Paulo. No ano de 2018 exibiu a individual “Luz com Trevas” no Espaço Cultural BNDES, Rio de Janeiro e participou da 33ª Bienal Internacional de São Paulo pela segunda vez. Em 2017, participou de “Alucinações à Beira Mar”, no MAM Rio de Janeiro e da exposição “Art of the Treasure Hunt: The Grand Tour” na Toscana, Itália. Em 2015, fez a individual “Obrigado volte sempre” na galeria A Gentil Carioca, Rio de Janeiro. Teve suas obras expostas em exposições individuais, entre as quais se destacam: “Da Banalidade”, Instituto Tomie Ohtake, SP (2016), “Humúsica”, no MAM-Rio(2012), “Mianmar Miroir (The Corridor), no Art Positions na Art Basel Miami (2006); “Imediações de Monte Basura”, no Centre D'art Santa Monica, Barcelona (2005). Entre as exposições coletivas destacam-se: Bienal do Mercosul 2009, Porto Alegre, “De Perto, De Longe”, Liceu de Artes e Ofícios, São Paulo (2008); 26ª Bienal Internacional de São Paulo, São Paulo (2004); “How Latitudes Become Forms: Art in a Global Age”, Walker Art Center , Minneapolis, EUA ; “Violência e Paixão”, MAM Rio (2003); “Cote à Cote - Art Contemporain du Brésil”, CAPC Musée d'Art Contemporain, França (2001); “Cefalópode Heptópode”, X Documenta de Kassel, Museum Fridericianum, Kassel, Alemanha (1997). Em 1996 recebeu o Prêmio Antarctica Artes com a Folha e o Prêmio IBEU de Artes Plásticas.
As obras de Cabelo fazem parte das coleções Gilberto Chateaubriand e Joaquim Paiva Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM RJ, Instituto Pipa, Acervo Banco Itaú S.A, João Sattamini - Museu de Arte Contemporânea de Niterói.