Laura Lima | Balé Literal

1 Julho - 30 Agosto 2019 Rio de Janeiro
Apresentação

 

ATO 01 — ANTES / Invenção e tangente concreção

 

'O experimental não se define. Ele está na própria concreção da invenção', diz Hélio Oiticica à Ivan Cardoso, em 1979.

 

2019. Sabe-se — a partir de pré-ensaios, conversas, mensagens — que Balé Literal, em construção, é um organismo vivo, resultante de pesquisas e interações entre arquiteturas e seres vivos. Para a sua operação, delineiam-se urgências no desenvolvimento de um léxico imagético-textual. Emergem vocábulos: defenestrar; ritornelo; balaclava; deboche ou sarcasmo?; instauração; absurdado; traquitana; clichê — em (des)conexão com o literal/figurado (um duplo); caosmo = caos + cosmo; merda/cocô. Lançam-se âncoras soltas em referências históricas: Bosch; Busby Berkeley; Hilst; Tatlin; Marquês de Sade; Pasolini; Georgi Ligeti; Maya Deren; o exorcista; Powers of Ten (Charles e Ray Eames); Judith & Holofernes; David Kopenawa; Fitzcarraldo; Cocteau; Sokurov; Beckett; Robert Musil; o bandido da luz vermelha. E outras âncoras mais em referências contextuais: Ana Maria Maiolino; Cildo Meireles; Angela Davis; O Pasquim; os 7 pecados capitais; pestes do Egito (chuva de rãs); quadrinhos da Revolução Francesa; cartazes das passeatas e manifestações políticas (2013 à 2019). Soma-se, ainda, a genealogia de trabalhos anteriores da artista: dopada, baile, cinema shadow, mágico nu, notas de rodapé, vaca na praia, fuga, ouro flexível. Salada mista, de tudo, devidamente anotado, em anotações (formatos diversos, na parede do espaço expositivo — literal, inclusive). Eloquência e vertigem da força do agora.

 

Convidados a bailar o balé, em um acordo de presença para contemplar ativamente o delírio, na produção da loucura e da lucidez da encenação da qual fazemos parte, o ponto de fuga está na explosão coletiva do instante-evento. O nódulo decisivo — o momento — é convite para uma viagem em estado de ânimo para plasmar linguagens.

 

ATO 02 — DURANTE / Presente infinito

 

A Gentil Carioca, 29 de junho, 19h e alguns tantos minutos. Início. Uma traquitana analógica estrutura o ritornelo. Os dois prédios estão em conexão — da galeria à encruzilhada — para a execução de três gestos: descida / defenestração (de obras); pausa / boca de cena que tem como palco a rua; subida / retorno. O espaço expositivo está desnudado (tudo está posto à vista): é uma coxia. De um lado, vê-se uma listagem de obras e obras em fila de descida (não se sabe se em ordem literal); de outro, obras em montagem, ao vivo. Sobre a listagem de obras, escrita na parede, em breves anotações incompletas, lê-se: martelo, grasnador, natureza morta, malevich preto, peixe (roupa branca), malewitch vermelho, (...), 'não víamos maldade nas segundas intenções', reverendíssima besta, anônimo trapo, (...), Bosch picotado, vini baseado, dark side of the moon (...). Na rua, habita-se a encruzilhada (os corpos estão, em sua maioria, ergonomicamente sentados), elege-se um ponto de visualidade (pode ser plural) frente ao convite à circulação por espaços (em movimento livre). Iluminam-se cenas, ouve-se o som nonsense lynchiano de Ana Frango Elétrico (anunciação do apocalipse?).

 

O grande ensaio geral é o ato em si: desce cocô — emoji concreto; descem palavras — dendroclasta (no singular?), partogênese (consulta-se o google, amansa burros virtual do hoje); desce saco de lixo iluminado (sublime). O ritornelo ritmado-regular-estável pauta o tempo: 1. descida; 2. pausa; 3. subida. O tempo une-se à arquitetura da luz a cada novo ciclo, ampliando escalas de percepção das obras, entre o monumental e o banal (onde está o referente real no tempo absurdado?). A luz dá luz — o iluminismo da defenestração - à produção e à projeção de sombra, em simultâneo, na experimentação catártica frenética-tranquila do balé literal (do absurdo) de Laura Lima.

 

Na massa de referências e coisas, uma enciclopédia de visualidades é configurada e ingerida (candelabro de cachaça — bebe-se; candelabro de coxinhas — come-se). Desce bandeira Lula Livre, reação ovacionada para o grito abafado latente parte integrante inevitável do momento político e — entre tantos outros objetos — elo de conexão estabelecido que configura um certo estado de confraternização do fraterno, da camaradagem que habita a encruzilhada (literal e metafórica). Tudo movido à força artística no ativismo de guerrilha da ação.

 

Nesse balé, juntos, se dança: nós, bêbados embevecidos atestamos a vivacidade — e morte — do instante, irreprodutível. 'Testamento de Orfeu' (de Cocteau, de Laura Lima), retorno (ou revisita, também um ritornelo) à representatividade da obra da artista em orquestração viva, ao vivo. Alguém contesta: 'Não é balé, é cinema!'. Cabelo canta 'Exu é número 1', em participação especial espontânea: na oferta de convivências, uma nota de rodapé no transe alucinante do coletivo. E, então: pausa, silêncio.

 

Desce a jumenta, Magnólia Gilberta, substantivo feminino. "O jumento é nosso irmão, quer queira, quer não. O jumento sempre foi o maior "desenvolvimentista" do sertão", cantou Luiz Gonzaga (não lá), em apologia ao animal, esse híbrido, estéril. Indelicadeza ética jogar o bicho pela janela? Bicho? Atinge-se alto grau de prospecção de realidade com taxidermia sintética que instaura a dúvida como elemento desejante (intencional) entre o real e o figurado. Enforcada pelo pé e com a cabeça arrastada no chão, pendura-se em estado de suspensão (espera-se que breve) a angústia existencial da civilização no presente infinito. Da jumenta, permanece a lembrança da ternura, que se eleva.

 

Tempo grave da gravidade das coisas. Em atração gravitacional (novamente, literal), se desce em direção ao chão: peso e queda. Tempos de 'fim': não há como voltar atrás. Dizer que algo acabou é assumir uma posição crítica diante de um fato: nada será como antes, nada será como depois. 'Tudo tem uma falha e é por aí que a luz entra', ecoa a escrita da bandeira, descida em algum momento, que permanece em modo ativo na memória editada (já em direção a um pós, porvir).

 

ATO 03 - DEPOIS / Sombras não inteiras

 

Pós-subida, no espaço expositivo (literal), em montagem com alturas alternantes, estão as obras, flutuantes. 'As obras são sombras não inteiras', diz a artista, no tempo do depois (pós-evento). Defenestradas, já são outra coisa: tudo está seccionado. E habitam esse armário de sentidos (metafórico), repousam sob um véu e, ainda que confinadas entre parede-teto-piso, permanecem em aberto, sem expectativa alguma de resposta. O quanto o literal é metafórico (e vice-versa)?

 

Na virtualidade do pós-imediato (ao evento), emergem # (plurais): #irreversível; #escandaloso. Debatem-se outros léxicos — in continuum — resto, rastro, vestígio, sobra-sombra e: adeus à linguagem!

 

Permanece o cão, o pastor alemão Astor, em guarda: fiel, dócil, treinado, domesticado, no espaço domesticante (referência imediata: O Sermão da Montanha: Fiat Lux, 1979, de Cildo Meireles). Vigilante vigiando (ou não), o cão dorme, alheio aos acontecimentos ao redor. No tempo do depois, das memórias editadas ('A memória é uma ilha de edição… a memória é uma ilha de edição', disse Waly Salomão) renovam-se as possibilidades de percepção que vêem o não visto (estado de percepção cão Astor). 'Balé Literal', de Laura Lima, é alento em tempo acelerado do (in)auspicioso presente infinito do agora.

 

Michelle Sommer, 2019

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