Vinicius Gerheim | Brejo
A Gentil Carioca convida para a abertura de BREJO, exposição individual de Vinicius Gerheim.
Na mostra, biomas mineiros da caatinga, cerrado e mata atlântica materializam corpos ex-castrados em novas possibilidades de liberdade. O artista parte da memória, tangenciando padrões e repetições de uma atmosfera autobiográfica. Perpassa lembranças, visita a história da arte e trava negociações entre figuras e fundos.
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Conversação entre Vinícius Gerheim e Pablo León de la Barra, 2022
PLB: Você nasceu em 1992, nas periferias de Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais. Queria que você me falasse da sua infância, do seu entorno familiar, do contexto local, de como foi crescer lá, das recordações daquilo, do que acha que te marcou.
VG: Cresci no bairro de São Pedro, na Zona Oeste de Juiz de Fora, que talvez, hoje em dia, tenha se expandido a um nível de complexidade que a palavra periferia já não consegue dar conta, porque começou a se urbanizar com a chegada da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nossas gerações também puderam observar uma mudança da paisagem e das pessoas que moravam ou passavam por lá.
São Pedro começou a ser populado pela geração dos meus avós - quando eles chegaram, ainda não tinha saneamento básico nem luz elétrica. No terreno da minha avó morava toda a família, mães e tios nos fundos do botequim do vô Rafael. Lá tinha um poço. Minha avó sempre matou galinha nos finais de semana e o botequim já foi um açougue. Tínhamos um quintal com muitas plantas e sempre tivemos contato direto com o distrito rural de Torreões, de onde minha família veio e vive, em parte, até hoje.
PLB: E quando você decidiu dedicar-se às artes? Tinha talento desde pequeno? Tem algo ou alguém que marcou você em acreditar que podia ser artista? Quando, como e porque você se mudou para o Rio? Você estudou onde? Teve algum professor/a que marcou você? Quem eram seus companheiros?
VG: Meu pai trabalhava numa gráfica, então sempre tive muito papel em casa, acredito que isso já tenha me estimulado a não parar de desenhar com sete anos, como a maioria das crianças costuma fazer.
Eu estudei a vida toda na escola estadual Delfim Moreira, onde na oitava série divulgaram o processo seletivo para a escola SESC no Rio de Janeiro. Eu me candidatei, ganhei uma bolsa e fui estudar lá. Pude finalmente ter acesso a um currículo e uma infraestrutura que me estimularam e me fizeram acreditar que era possível procurar uma carreira nas artes. Era uma escola interna, tempo integral. Então o Rio já se tornou um território possível, conhecido, e eu já tinha meio caminho andado - já era um terreno geograficamente possível para mim.
Depois entrei na Escola de Belas Artes da UFRJ e me apaixonei. Eu vi um ateliê gigante, que era uma ex-quadra de educação física, onde várias disciplinas compartilhavam o mesmo espaço. Tive o privilégio de estudar lá em um momento em que benefícios como a bolsa auxílio e a bolsa extensão me permitiram fazer um curso prático em tempo integral. Também estudei na Escola de Artes Visuais do Parque Lage nos primeiros anos do curso de fundamentação, onde novamente o programa de bolsas não só me permitiu frequentar as aulas da instituição, mas também a conhecer pessoas que dividiam e entendiam a dificuldade de desenvolver qualquer linguagem com a experimentação limitada pelo aporte material. Tive a oportunidade de estar em contato com professores que sempre me estimularam - não só a encarar a carreira artística como um ofício, mas também como uma pesquisa própria que eu tive intimidade o suficiente para elaborar. Consigo ver no meu trabalho um pouco de cada professor que passou por mim, e esta reverberação sempre me faz lembrar que eu não estou pintando sozinho, mas impulsionado pelos muitos olhos e mãos que cruzaram o meu caminho e me ajudaram a explodir a percepção de várias formas. A gente sempre carrega um pouco de quem contribuiu para a construção do nosso fazer e do nosso pensar.
Morando no Rio eu tive a sorte de compartilhar de vários ambientes, desde ateliês a casas ou vizinhanças com outros artistas, como Marcela Cantuária, Walla Capelobo, Lucas Lugarinho, Pedro Bento e Gabriela González, com quem tive constantes trocas e discussões de extrema sinceridade e riqueza de referências e temas. Isso sempre contribuiu para a criação de um campo fértil de práticas livres de partituras oficiais.
PLB: Em Juiz de Fora existe um museu, o Mariano Procópio. Faz tempo que penso em curar uma exposição sua neste museu. Fico curioso para saber se você o visitava - qual era a sua experiência de arte em Juiz de Fora e como isso mudou quando você veio para o Rio de Janeiro. Visitava museus e galerias aqui no Rio? Qual foi a sua experiência de contato direto com a arte? Lembra de alguma obra, artista ou exposição que tenha te impressionado? Ou você já é da geração cujas primeiras experiências da arte foram através da internet?
Depois de formado no Rio de Janeiro, você trabalhou como assistente da artista Lúcia Laguna. Acho isso interessante porque ela representa um pouco desta figura artística atípica - mulher da periferia, já reconhecida desde adulta. Outros artistas como Rafael Alonso e Jonatas Moreira também trabalharam como assistentes de Lúcia. De alguma maneira, o ateliê dela tornou-se uma espécie de pós-graduação para muitos jovens artistas. O que você fazia no ateliê e o que aprendeu com ela? Trabalhou como assistente de mais alguém?
VG: Durante todo o meu período de vida em Juiz de Fora, o museu Mariano esteve fechado para reformas, então eu nunca tive a oportunidade de acessar seu acervo - apenas o parque que cercava o casarão. É interessante pensar que durante todo esse tempo eu vivi os arredores desse espaço, mas nunca entrei nele de fato. Meu contato com atividades culturais e exposições em Juiz de Fora foi ligado às instituições e a conservação de suas memórias: o museu do rádio, o museu dos bombeiros, etc. Foi só no ensino médio no Rio de Janeiro, estudando na escola SESC, que pude ter acesso a uma oferta mais numerosa e mais plural de práticas culturais.
Antes de ser afetado diretamente por práticas artísticas, penso que também fui afetado por ambientes que não necessariamente integram o mundo da arte. Minha família era muito cristã e muitos trabalhavam com a paróquia. Cresci muito próximo a uma instituição religiosa, que, ironicamente, apesar de ser um ambiente de repressão, também possibilitava práticas de manipulação da linguagem na minha rotina; desde as encenações dramáticas de narrativas bíblicas à ornamentação da igreja para comemorações e ritos.
Minhas primeiras experiências com a arte definitivamente vieram com a internet. O primeiro trabalho de arte que me arrebatou foi o "Retrato de Sílvia" de Otto Dix, que vi pela internet. A pintura tem uma atmosfera em carmim, vibrante, e uma figura andrógina com uma mão aracnídea e exuberante, vestida de uma forma que na época me fez pensar sobre o EMO. Neste momento eu pude perceber que uma imagem pode ter coeficientes de leituras que se ramificam, independente do tempo em que foram criadas, e isso as torna eternamente interessantes. Neste trabalho, não é fundamental a categorização temporal por fatura ou operação pictórica, ou uma escola acadêmica, o que torna ainda mais fácil o pacto ficcional com o "Retrato de Silvia". Foi o que aconteceu comigo, eu acho.
Trabalhei com a Lúcia Laguna por dois anos, entre 2019 e 2021. Acredito que para qualquer pessoa recém-graduada é uma experiência riquíssima, porque é uma oportunidade de manipular materiais e experienciar uma infraestrutura e uma rotina de produção que um jovem artista não tem a fácil alcance. Acho que para mim foi uma educação de corpo-ateliê, de entrar em contato com estratégias processuais e com a expectativa.
PLB: A primeira vez que visitei você - faz quase dois anos, você tinha um estúdio na fábrica Bhering - você me mostrou seus antigos trabalhos de 2015 que eu adorei, e que só meses depois, quando vi pessoalmente, descobri que eram guaches muito pequenos e não pinturas como tinha imaginado. Os trabalhos são incríveis, têm cores muito vivas e retratam um mundo íntimo, onírico, do interior, um tanto selvagem, tropical com um pouco de surrealismo ou um realismo mágico. Eu lembro que falei que tinham algo que me lembrava o artista indiano Bhupen Khakhar (1934-2003). Pode me falar um pouco desses trabalhos e por que não continuou nessa direção?
VG: Eu já fazia pintura na Escola de Belas Artes estudando a questão da figura e do fundo, e na época me faltavam elementos semânticos que não fossem o corpo ou a pose. Sentindo essa falta, comecei a fazer guaches em um exercício - como uma espécie de catalogação de formas que marcaram a minha vida, a minha memória.
O fazer era guiado pela construção da composição da direita para a esquerda e aproveitava o máximo do material com que eu estava lidando, no caso o guache, utilizando todas as matizes saturadas em sua riqueza de pigmento. Na época, eu tinha um preciosismo com o material e não queria des-saturar o pigmento, então o volume não era uma questão. O interesse não era o campo ou a gravidade, e sim as configurações de formas e temperaturas.
Atualmente, continuo revisitando esses padrões que fizeram parte da minha infância e de um imaginário popular do qual compartilhei. Agora, os tamanhos permitem um jogo de peso e gravidade que antes era impossível e os padrões tangenciam paisagem e natureza morta.
PLB: De maneira contrária aos pequenos guaches, as telas que você apresentou n’A Gentil Carioca em agosto de 2021 e que apresenta agora na individual BREJO deram um salto enorme em termos de escala. Agora as telas são gigantes, e nelas, quase sempre aparecem figuras masculinas, brancas, um tanto andróginas ou assexuadas. A figura poderia ser você. Aparece às vezes solitária, mas em outras ocasiões se multiplica, travando diálogos consigo mesma, se olhando em gestos de descobrimento ou de desejo. Outras vezes, se direciona ao espectador, às vezes de maneira curiosa e sedutora, às vezes desafiante.
Nas telas que antecedem esta série, não existia fundo ou existia só o fundo. As telas consistiam ora de figuras flutuando no vácuo, ora de padrões inspirados em tecidos e estamparia, não contando com figuras humanas. Na última exposição n’A Gentil Carioca, a figura humana aparece em transição, querendo transformar-se em vegetação ou em animal, em alguns casos em galinhas, peixes, cachorros selvagens, maritacas ou amamentando-se de uma vaca, em outros casos virando homem-banana, homem-jabuticaba, ou homem-manga. Nas telas de BREJO, você agora se transforma quase em paisagem - em mar, deserto, pantanal - na fronteira entre fundo e figura, entre o retratado e a paisagem que se dissolve. Também aparece um excesso de pintura, sobretudo de óleo, mas também de acrílica, assim como diferentes técnicas de pintar que parecem fazer referência à diferentes momentos da história da pintura. Você poderia falar mais desta série de pinturas, de como se deu a transição em direção a elas, e em que direção você acha que elas continuaram?
VG: O corpo é o nosso limite físico. É nele que moramos, então estamos sempre negociando com a atmosfera ou o ambiente que nos cerca. No momento em que comecei, de certa forma, a catalogar ou colecionar ambientes de liberdade, também fui buscando motivos, que se apresentavam numa interseção entre estampas e padronagens do imaginário popular e a história da pintura. Muitos panos de prato são estampados com a mais típica natureza morta que compõe vasos e frutas, muitas cortinas e azulejos simulam paisagens naturais, a pintura/quadro também mora nesse lugar entre tecido e janela. Os trabalhos antigos expõem essa negociação entre espectador e cena, a questão da vigilância, a testemunha do flagra. Acredito que o trabalho naturalmente se direcionou para as estratégias humanas de cobrir e descobrir, proteger ou esconder, ornamentar. Quando penso na palavra paisagem, o cenário que me vem à mente é a imagem de natureza. Estamos sempre tentando preencher espaços assépticos e inóspitos com algo que nos desperta liberdade. Enquanto homossexual, isso é ainda mais urgente. Eu aprendo muito com os trabalhos enquanto os faço, não existe um projeto ou meta final sem o processo. A vontade maior é exatamente a de tentar aproveitar tudo que aprendi sem desperdício e com a maior potência possível. Vivemos um momento em que consumimos imagens em uma mesma escala e superfície, nas telas de celulares e computadores. Talvez a pintura em mim seja capaz de reencantar a visão e a fé na imagem através da sua hiper superfície e dos seus jogos de escala, do poder de construir memória, arrebatar sensações e ser fonte de conhecimento. Sou muito grato em trabalhar com algo tão íntimo e tão científico.