Vivian Caccuri | Febre Amarela
Há exatos dez anos fui apresentado à Vivian Caccuri pelo antropólogo Hermano Vianna que foi logo dizendo que devíamos fazer alguma coisa juntos e não deu outra, começamos a trabalhar num projeto chamado Pororoca Rave que teve como inspiração uma obra da Vivian que tinha como premissa a captação de sonoridades subcutâneas, fluxos de ruídos surgidos do roçar da pele em objetos, roupas, tecidos ou advindos do trânsito sanguíneo nas veias e artérias, das absorções e movimentações das vísceras que nos compõem. Um achado de manipulação sonora com efeito insólito e que cumpria à risca o desígnio de uma, digamos obra de arte, mexer com a nossa atenção, introduzir um novo elemento na nossa percepção do mundo abrindo algum portal inédito de compreensão. Daí que fiquei muito fã dessa garota, dessa mulher, de suas ideias e realizações. Faço essa pequena introdução pessoal só pra dizer que dez anos depois ela novamente me surpreende e a todos nós com uma exposição, um trabalho que funciona como um mini épico de projeção, prospecção futurista a partir do Brasil atual. Ela faz isso usando como plataforma de lançamento para suas imagens e materializações de pensamentos a volta da febre amarela e tudo o que ela representa de eterno retorno dos sinistramente tradicionais problemas brasileiros relacionados a sua famosa configuração de ilhas de excelência cercadas por pântanos de atraso. Água social parada.
Acontece que Vivian vai muito além de simplesmente diagnosticar ou comentar os flagelos e as mazelas dessa sinistra tradição. Ela dá uma volta por cima sem cair em utopias sentimentalóides ou distopias paralisantes. Como se fosse uma alquimista de índole cibernética ela toma as rédeas do caos brasileiro e propõe uma sociedade fortalecida justamente pela sobrevivência nesse caos. Ela cria o Neobrasileiro.
Podemos vislumbrar uma espécie de pentagrama de assuntos e fetiches contemporâneos que compõem essa espécie de saga sobre a atualidade brasileira e suas tendências num futuro próximo. Cinco imagens que funcionam que como os tais portais que nos levam a perceber de forma diferente o que chamamos de realidade. Imagem número um: a mais impressionante das imagens é aquela que remete a uma espécie de capela sistina das contaminações, das mutações, da viroses e invasões de corpos e mentes nas nossas ainda assim chamadas sociedades humanas. O braço de um suposto Adão febril erguido na vertical com seus dedos sendo tocados não pelo Jeová criador de tudo mas por mosquitos insinuantes transformadores de tudo que já existiu, existe e existirá em termos de movimentação biológica, genética nesse planeta. O braço, a mão e os dedos desse Adão febril com vários mosquitos passeando sobre eles nos remete de forma veloz a uma dupla situação que configura um paradoxo da nossa era: os mosquitos parecem drones de pesquisa (clandestina ou não) tirando amostras de pele, sangue visando algum antibiótico, alguma melhoria para o organismo dos humanos. Mas também representa a podridão de setores gigantescos do planeta onde o lixo civil não é reciclado, onde submundos de sobrevivência ínfima proliferam transformando pessoas em adubos para experiências eugênicas. Esse lixo civil também circula fugindo de tudo e leva junto vetores de não se sabe que doenças.
O braço do Adão febril habitado por mosquitos escancara na perspectiva futurista de Vivian o gênesis – e a gênese – do surgimento de um possível novo brasileiro saído justamente dessa situação de caos, crise, vácuo, incertezas, precariedades. Na verdade o que acontece nesse país desde sempre marcado por violência (mesmo antes dos colonizadores chegarem pois como todos sabem índio quer apito, se não der o pau canta e eles cantavam muito antes dos colonizadores chegarem), mercados fechados, desconfianças generalizadas, rapinas e corrupções, escravismos, banditismos, enfim todo um cardápio de posturas e convivências sociais que puxam o tapete da visão de um Brasil predominantemente hospitaleiro e acolhedor para todos os tipos humanos. Só que na instigante peculiaridade do trabalho de Vivian essa tradição de luta renhida do brasileiro ganha contornos mais drásticos socialmente, mais bizarros ciberneticamente, mais contundentes biologicamente pois não são instituições políticas, humanistas que capitaneam as mutações, a gênese do novo brasileiro. Acabou que na visão de Vivian todos são engolidos junto com a população por avalanches de Brumadinhos e Marianas espalhados pelo país. O braço do Adão febril parece sair dos escombros de uma dessas avalanches ao mesmo tempo contaminado e ressuscitado pelos mosquitos vetores. Transformações ocorrem mas não por vias constitucionais, jurídicas ou revolucionárias mudanças de parâmetro político e sim na estrutura biológica dos corpos sobreviventes, na capacidade cognitiva, mental desses neobrasileiros que a semelhança dos nossos primeiros ancestrais criam, descobrem, uma nova linguagem, novas habilidades tecnológicas a partir de colagens de restos de aparelhagens e pedaços de tudo além de reeditarem o que conhecemos como migrações pré-históricas. Como diria uma comissão de frente de paleontólogos e arqueólogos: “Olha o Paleolítico aí, gente”.
Vivian Caccuri em Febre Amarela explora de forma desconcertante, explora como ninguém fez antes o universo em expansão contido na máxima o Brasil será sempre uma ruína futurísta.
Ao usar a febre amarela e seu repertório de dores lombares, vômitos de bílis negra, vertigens e fervura corporal intensa além do seu histórico de migrações (os colonizadores são seus “cavalos” principais), como plataforma visionária para o seu trabalho Vivian Caccuri oferece-nos ao mesmo tempo um mergulho na história conturbada, instigante, precária e fascinante do Brasil e na especulação ligada a ficção cientifica que nos abduz para uma anomalia bem humorada, um maravilhamento estranho.
O Adão febril é o primeiro e mais extenso portal.
Imagem dois: A Sesmaria Sound System.
Como eu disse no início Vivian é uma eximia criadora e manipuladora de aparelhagens que enjaulam, transformam, realimentam, expandem, fragmentam, capturam, canalizam, liquidificam, filtram, provocam mutações nessa criatura chamada SOM e seus apóstolos. Os ruídos, as vibrações incessantes e insinuantes que nos envolvem e nos rodeiam. Se a Febre Amarela foi a sua inspiração para esse trabalho e se os mosquitos são o coro de vetores que narra os dramas gerados por essa doença e consequentemente narram o épico de ficção científica trash incutido na exposição é óbvio que nossa artista enveredaria na pesquisa dos zumbidos dessa turma. Zumbidos que já estão aí há muito tempo perturbando nossas consciências.
Nas suas pesquisas Vivian descobriu que os canaviais eram um grande foco de mosquitos. A superposição de assuntos sociais, sonoros, cibernéticos, biológicos tão cara a Vivian tem nesse foco canavial segundo portal: casa grande, senzala, vírus, zumbidos e mutações. Além das indumentárias específicas pra se lidar com o calor e o ataque dos insetos.
O que Vivian criou então demonstrando mais uma vez sua capacidade de invenção artesanal, seu talento para materializar objetos e aparelhagens que são esculturas encarnando simbolismos em choque, situações em choque? Criou um sistema de som que tem como base um dos produtos canaviais, a popular rapadura. Caixa de som feita de rapadura para abrigar os ruídos, os sons, o coro gigantesco e incessante dos mosquitos anunciando a chegada das mutações que vão gerar o neobrasileiro. De uma bacia cheia de açúcar fervente som intermitente. Só a Vivian mesmo, com seu tesão alquímico, seu olhar de link transformador pra bolar essa metamorfose ilustrativa das suas premissas e pesquisas. O Sesmaria Sound System.
Imagem três: Os pagodes expostos nas paredes parecendo varais de encefalogramas, dazibaos de estatísticas arruinadas, abadás fossilizados depois de um enxame repentino ou aventais de gigantescas maquinas de captação sonar são na verdade híbridos de mosquiteiros e superfícies vibrantes, cheias de tecidos nuances. O neobrasileiro ser humano totalmente fênix enlameada saído de avalanches de contaminação desenvolveu além de uma capacidade auditiva muito acima da que tinha antes intensificada pelo uso constante de açúcar nos ouvidos, espécie de rapadura viennatone, rapadura auditiva que permite distinguir os vários sons da mosquitada. Pagodes também servem como parangolés. Telas indumentárias protegendo a tela da pele humana.
Imagem quatro: Pois é, se você se diverte, se você viaja no festival de roupas e jeito de vestir da pessoas numa esquina de qualquer grande cidade você ia pirar nas esquinas dos territórios neobrasileiros pois a maioria das roupas eram colagens feitas com fantasias criadas para campanhas de erradicação do superstar dos mosquitos: o Aedes aegypti. Algumas imunidades não eram pra sempre. Tinham que ser renovadas. Daí que os pagodes, as roupas de propaganda e até raquetes anti-mosquito protegiam os neobrasileiros no curto período entre uma picada imunizadora e outra. Por causa dessas roupas todos ganharam o apelido de INSETO ARLEQUIM assumindo a postura sacana e provocadora que no imaginário de todos o mosquito com sua capacidade mutante, mortal e sorrateira encarnava. Sempre rindo dos humanos que se acham gigantescos na sua existência mas que sempre foram derrotados por invisíveis pontos na pele.
Imagem cinco: Mariana Mad Max, Brumadinho Walking Dead.
Com os pagodes impedindo a entrada de mosquitos no seu corpo o cantador vai atravessando as sombrias franquias de Brumadinho e Mariana, quero dizer, outras barragens caíram gerando um circuito de cidades soterradas, pompeias de metal pesado e pântanos insólitos multiplicando todos os tifos, todas as malárias, todas as zikas, dengues, chikungunyas e, claro febres amarelentas que no final das contas por conta da mistura do metal pesado, de alguns elementos contidos nas fumaças migratórias dos desmatamentos e das poluições mais variadas com os mecanismos de defesa dos humanos geraram imunidades inéditas no homopóssapiensneobrasilienses.
Bônus: Vivian Caccuri teve na figura do estilista paulistano Apolinário o cúmplice perfeito e mais que competente na tradução da sua saga futurista para o universo das roupas, pagodes, burcas, capas, parangolés, vestimentas extravagantes, traduzindo uma realidade extravagante repleta de inusitadas tecnologias, insólitos artesanatos, impressionantes manipulações de materiais. Uma loja com as criações que Apolinário estará presente na exposição.
As palavras vírus, vetor, vácuo, virose, vertigem, invasores são os abracadabras, os talismãs verbais que abrem os portais do pentagrama de imagens futuristas que compõem o núcleo de Febre Amarela. Vivian Caccuri vai fundo na temática das mutações orgânicas advindas das contaminações surgidas de desastres. Vai fundo na ficha corrida da precariedade social brasileira. Vai fundo na constatação/metáfora de que no mundo inteiro as pessoas estão de uma forma ou de outra se fechando ou se expandindo em sociedades virais, todos somos invasores de corpos nos dias de hoje e sem querer querendo estamos transformando de forma acelerada, celerada mas ao mesmo tempo cheia de vida a Terra num gigantesco templo onde os sacerdotes principais serão os insetos e nossos corpos as mais extravagantes hóstias, vetores da transcendência final.
Vivian Caccuri continua sendo, e esse trabalho acentua isso, um farol raro no cenário modorrento das artes plásticas, iluminando com os seus 360 graus de luz potente e visionária as nossas vidas tão exigidas, tão perturbadas, tão agitadas.
Fausto Fawcett, 2019