Maxwell Alexandre | O Batismo de Maxwell Alexandre
O Batismo de Maxwell Alexandre, nome dessa primeira exposição individual do artista, é intencionalmente performático, já que o ritual nele adotado não nos remete ao de nenhuma religião conhecida. No entanto, a cerimônia será de acordo com o rito da Igreja do Reino da Arte, recém criada pelo artista e alguns amigos, dentre eles o rapper BK, sacerdote da cerimônia, que animará o som da festa de inauguração.
No dia da abertura, as pinturas de grandes formatos que integrarão O Batismo de Maxwell Alexandre serão levadas a pé pelo artista e por alguns membros da nova igreja — desde seu ateliê na Rocinha, até a galeria A gentil Carioca, situada nas imediações da Praça Tiradentes, no cruzamento das ruas Luiz de Camões e Gonçalves Lêdo, local em que essas telas serão finalmente montadas. Mas tal cruzamento também pode ser considerado um emblema da encruzilhada biográfico-poética que informa o trabalho de Maxwell — como também da encruzilhada real formada por estas ruas em que o único demônio é a intolerância à diversidade. A estas pinturas, levadas em procissão por quilômetros, somam-se outras, da mesma série Reprovados, pintadas sobre esquadrias e portas, cujo peso, no entanto, excluiu as do traslado ritual.
O predomínio do devaneio poético nessa ação urbana, sobre teor o religioso da cerimônia batismal que a informa, é quase autobiográfico. Tanto as experiências cotidianas do artista, como as referências comunitárias e familiares observáveis em sua obra, parecem convergir para o Batismo de Maxwell. Mas podemos tomá-las simultaneamente como indício da celebração de outro ritual, também comemorado essa noite: o início da carreira artística de Maxwell Alexandre Filho de família religiosa, nascido e criado na Rocinha, formado em design pela PUC-RJ em 2016, Maxwell, no entanto, não foi batizado. Dos 14 aos 24 anos atuou, com destaque, no circuito profissional de patins street. Essa experiência mudou sua percepção do espaço urbano já que, com rodas sob os pés, o corpo do patinador, veículo veloz de circulação diária, despertou a curiosidade poética do artista, mais especificamente para o vertiginoso luxo de imagens por meio do qual, durante uma década, viu deslizar a cidade do Rio de Janeiro. São dos anos fonais dessa época suas primeiras pinturas de grafismos sobre muros e equipamentos urbanos, fluidas e gestuais, quase tão ágeis quanto seus patins.
Em depoimento do artista para o Catálogo 2017 — convite para colaborar, organizado como registro de seu processo de trabalho, ele resume seu novo foco poético, elaborado com base na série Reprovados. “[...] que já estava em minha cabeça há bastante tempo, mas eu não queria começar a pintar negros em situações de mazela e dizimação. Reprovados é crítico é ácido, por isso pintar Pardo é Papel antes foi uma boa escolha como prólogo, para falar sobre marra, empoderamento e autoestima.
[...] Quando voltei a pintar Pardo é Papel, achei pertinente continuar com esse formato de grandes pinturas, pra intensificar o diálogo entre a quantidade de papel articulada e o número de corpos pretos em posições contemporâneas de poder. Eu queria densidade e contraste entre essas duas informações — corpo negro e papel pardo, por isso decidi ir adiante com pinturas de grande formato.”
Maxwell distingue, com precisão poética, aquilo que quer dizer discursivamente — Não “pintar negros em situações de mazela e dizimação”; “falar sobre marra, empoderamento e autoestima” — daquilo que só pode redizer de outras maneiras por meio da edição de materiais ou de símbolos, em suportes heterogêneos comprometidos com a sintaxe dos trabalhos. A conversão de discursos verbalmente explícitos (temáticos, narrativos, pessoais, culturais ou sócio-políticos) em dispositivos poéticos (obras), quase sempre silenciosos, não é automática, nem literal. Ela atravessa campos distantes daqueles da coerência verbal estrita e, com isso, preserva a obra da compulsão temática que pode levá-la à simples representação ou ilustração de tais discursos.
Os grandes formatos adotados por Maxwell Alexandre desde a série Pardo é Papel continuam a ser utilizados em Reprovados. No entanto, não podem ser avaliados de um ponto de vista somente estético, posto que as gigantescas dimensões dessas pinturas, mais que um formato atraente, são, para o artista, um meio para “intensificar o diálogo entre a quantidade de papel articulada e o número de corpos pretos em posições contemporâneas de poder”; ou para permitir “ato político e conceitual que eu estava articulando ao fazer isso: pintar corpos negros sobre papel pardo. Uma vez que a cor parda foi usada durante muito tempo para velar a negritude”.
Os grandes formatos das pinturas atuais de Maxwell nos obrigam a vê-las de uma certa distância, pois sua grande escala assim o determina. As dimensões destas pinturas podem ser funcionalmente associadas aos murais que predominavam na antiguidade, antes da invenção do quadro.
Murais não costumam retratar cenas íntimas. Sua função, inversamente, seria a de celebrar a coletividade e tudo o que há de positivo no legado de uma cultura específica, já que Maxwell não quer referendar “situações de mazela e dizimação” a que vem sendo submetidos e humilhados escravos e afrodescendentes. Desse ponto de vista, as pinturas do artista possuem essa positividade ancestral da qual talvez extraiam seu teor mais radicalmente contemporâneo.
Os impactantes “murais” de Maxwell reúnem num mesmo espaço (a tela) diversas situações específicas em que grupos de personagens negros anônimos da Rocinha, cujos rostos estão apenas esboçados, se espalham separados sobre fundos planos cobertos por estampas de pequenas ondas azuis, extraídas da parte interna das piscinas Capri, abundantes em muitas lajes da favela.
Estes personagens, quase vultos, porém altivos, são os mesmos que circulam cotidianamente pelas ruas e vielas da Rocinha: mulheres com compras, crianças uniformizadas das escolas municipais, trabalhadores, funcionários de serviços urbanos, marcas de produtos destinados ao público infantil, sem faltar a presença de policiais, também negros, em sua violenta rotina autoritária.
A lógica das pinturas sobre portas e esquadrias de ferro reais e comuns nas casas da favela é inversa daquela dos “murais” do cotidiano comunitário, já que toda celebração coletiva tem na intimidade doméstica seu contraponto reflexivo. De acordo com citações que separam as seções do Catálogo 2017 – convite para colaborar: não foi pedindo licença que chegamos aqui e Laje só existe com gente.
Fernando Cocchiarale, 2018