Por Nelson Gobbi, em 06/08/2023 – Jornal O Globo
Anunciada como “a mais abrangente exposição dedicada à produção de artistas negros feita no país”, a coletiva “Dos Brasis”, inaugurada na quarta-feira no Sesc Belenzinho, em São Paulo, teve uma origem igualmente ambiciosa. Com título inspirado em verso do samba “História para ninar gente grande”, que deu o 20º campeonato à Mangueira, em 2019, a mostra reúne obras de 240 artistas negros, produzidas do fim do século XVIII aos dias atuais, e teve início em 2018, com pesquisas em todas as regiões do país, auxiliadas por unidades do Sesc em cada estado. Na primeira fase, Igor Simões assumiu a pesquisa com Hélio Menezes (que deixou o projeto para se juntar à curadoria da 35ª Bienal de São Paulo, marcada para 6 de setembro deste ano). Simões permaneceu como curador-geral, auxiliado por Lorraine Mendes (Pinacoteca de São Paulo) e Marcelo Campos (Museu de Arte do Rio).
Um programa de residência on-line, com 150 selecionados, em 2022, complementou as seleções in loco para a curadoria da exposição, que ocupa todo o Sesc Belenzinho, inclusive com intervenções em áreas externas, como na piscina.
Nos espaços expositivos, a mostra se divide em sete núcleos não-cronológicos, inspirados na produção de intelectuais negros, a exemplo de Luiz Gama, Lélia González, Beatriz Nascimento e Emanoel Araújo.
Dividem os espaços trabalhos de artistas históricos, como Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), Heitor dos Prazeres (1898-1966), Abdias Nascimento (1914 -2011), Maria Auxiliadora (1938-1974), e nomes surgidos recentemente, desde Rosana Paulino, nos anos 1990, à produção pós- 2000, a exemplo de Agrade Camiz, Castiel Vitorino Brasileiro, Mulambö, Dalton Paula, André Vargas, Rafael Bqueer, Panmela Castro e Flavio Cerqueira.
— Arte afro-brasileira é mais uma categoria política que estética, e isso tem salvaguardado a produção de artistas negros ao longo da história. Queríamos uma mostra cheia, com obras de várias épocas e todas as regiões, para mostrar essa pluralidade — destaca o curador-geral Igor Simões. — É comum falar da arte negra a partir da falta, do silenciamento. Mas essa produção existe desde sempre, esses artistas nunca estiveram em silêncio. Falamos aqui de presença, trazendo categorias que têm a ver com o pensamento negro, e não pautadas pela branquitude.
Outra preocupação é que a questão negra não se fosse tomada como um tema, ainda que atravesse as obras de diversas formas.
— Sobretudo quando se tenta analisar essa produção só pela lógica da luta, da resistência. Se você está resistindo, é contra uma força maior que você — observa Lorraine Mendes. — E nossa vida é bem maior que isso, a gente projeta futuros, a gente fabula. A mostra aponta para essas outras possibilidades de mundo.
Os curadores apontam também para os riscos da categorização do que seria uma “arte negra”, entendendo que a história oficial da produção nacional poderia ser considerada uma “arte branca brasileira”.
— Historicamente, artistas negros esperaram ser incluídos entre modernistas, surrealistas, concretistas, e eram mantidos em paralelo, muitas vezes sob o guarda-chuva do popular, do naïf. Hoje, essa produção está estruturada sobre outra lógica. Não interessa mais ser incluída em cânones antigos, quem quiser que corra atrás do que está acontecendo — diz Marcelo Campos.
Um dos nomes cariocas na mostra, Panmela Castro participa com um retrato de Rosana Paulino e uma instalação em forma de máquina de pelúcia, na qual o público pode tentar pegar um dos bonecos que reproduzem os artistas selecionados para a coletiva.
— Meu trabalho fala de afeto, acolhimento. É muito bom ter essa sensação de pertencimento, de estar entre essa quantidade enorme de artistas incríveis, de me entender fazendo parte de um movimento maior — comenta Panmela, de Belém (PA), onde participa da primeira Bienal das Amazônias, que foi aberta ao público anteontem.