RIO - No dicionário, o verbete defenestrar é o ato de atirar algo ou alguém pela janela - palavra que, em latim, era fenestra, de onde deriva "finestra", em italiano, e "fenêtre", em francês. A violência simbólica aplicada à ação torna inequívoca a diferença entre simplesmente jogar algo (ou empurrar alguém) janela abaixo. Também associada à perda de poder (daí tantos ministros ou técnicos de futebol "defenestrados" do cargo), a expressão tem seu sentido ampliado por Laura Lima, na abertura neste sábado, às 19h, de seu "Balé literal", na galeria A Gentil Carioca, no Centro.
A mostra terá início com uma ação que transportará todas as obras e objetos entre as janelas dos dois prédios que integram a galeria, nos números 11 e 17 da Rua Gonçalves Ledo. Um sistema de cabos com roldanas ligado a três postes de metalon, instalados provisoriamente na esquina entre a Gonçalves Ledo e a rua Luís de Camões, movimentará os elementos da mostra, impulsionado por duas bicicletas adaptadas, postadas em janelas opostas dos dois prédios.
Toda a ação será acompanhada por uma sinfonia assinada pela cantora e compositora indie Ana Frango Elétrico, interpretada por quatro músicos ao vivo. O balé a que se refere o título, contudo, não será protagonizado apenas pelos objetos transportados. Todas as pessoas envolvidas na ação, incluindo o público, integram a "dança".
- Tem essa necessidade de extravasar, que vem de uma certa perplexidade com o momento e da capacidade de o artista se relacionar com o seu tempo. Ainda estou absorvendo todo este léxico atual, e decidi criar um novo glossário para o meu trabalho - comenta Laura Lima. - Por isso quis trabalhar com essa literalidade a que se refere o título, é como se eu quisesse falar e desenhar a significação ao mesmo tempo.
Entre as obras e objetos que serão transportados entre as janelas, estão faixas, trajes, uma representação da "Cruz negra" (1923), de Kazimir Malévich, ícone do suprematismo, e um "candelabro" de coxinhas que a artista mandou fazer em um serralheiro. À frente, a escultura traz uma Torre de Tatlin, o monumento à Terceira Internacional projetado na década de 1920 pelo arquiteto russo Vladimir Tatlin e jamais construído em escala real.
- O mais legal é poder debater o conceito com todo mundo que trabalha na exposição, de quem fabrica os objetos aos engenheiros que avaliam o espaço- conta Laura. - Nesta são umas 30 pessoas envolvidas, gosto dessa capilaridade.
Espírito de guerrilha
Após a ação deste sábado, a exposição continuará em cartaz na Gentil com as obras "defenestradas" até 30 de agosto. Esta será uma exceção entre as mostras de Laura Lima a contar apenas com objetos, sem a participação de seres vivos (humanos inclusos) por toda a sua duração. Uma situação distinta de "Alfaiataria" (2018), na qual ela transformou a Pinacoteca (SP) em uma oficina têxtil, com alfaiates e costureiras trabalhando no local; ou da obra criada para a coletiva "Alegoria barroca na arte contemporânea" (2005), em que faisões vivos passavam os dias se banqueteando em um cercado no CCBB do Rio.
- Essa exposição tem um espírito de guerrilha, de montar tudo na rua para recolher em seguida, é uma ação para ser feita uma vez - observa. - Sem querer romantizar, é como se o artista estivesse sempre numa corrida, um passo à frente do seu perseguidor. Muitas vezes o sentido do trabalho só se revela durante este processo.
Na proposta artística de Laura, que refuta a denominação de "performance" para as suas criações, pessoas e animais também são vistos como matéria para as obras. Trabalhando no limite entre diferentes expressões, a artista se arrisca a reações mais radicais, o que considera positivo.
- Acho todos os ativismos essenciais. Também tenho os meus, só não levo isso para as obras. Trabalho com todos os órgãos que certificam o bem-estar dos animais, e muitos deles são tirados de uma situação de abate para ficarem livres depois - diz Laura. - Mas se for lidar com isso como uma limitação, vou ter de achar outra profissão. Como artista, não posso ser uma "boa moça".
Em sua última mostra na galeria, "Fuga" (2008), todo o espaço foi transformado em um viveiro de pássaros. Sócia-fundadora da Gentil com Márcio Botner e Ernesto Neto, Laura decidiu voltar à casa ao decidir o projeto, no fim do ano passado.
- A Gentil tem essa característica de ser uma galeria de artistas, que dá total liberdade para os outros artistas. Agora virei um pouco a filha pródiga, que volta dizendo: "todos bailaram bem por aqui, agora é minha vez" - ressalta. - Gosto de trabalhar com este risco, de puxar meu próprio tapete. Essa sensação na boca do estômago é fundamental, seja num projeto grande ou diante de uma folha em branco.