RIO — Em fotografia, superexposição é o fenômeno causado pela entrada de luz em excesso na câmera, ocasionando perda de definição e cores nas imagens, que ficam “estouradas”. Nas redes sociais, o termo passou a se referir ao ato de se expor demasiadamente. Na primeira individual da sua carreira, em cartaz na Gentil Carioca, Aleta Valente cruza as duas referências no título da mostra, “Superexposição”, trazendo à galeria as séries de autorretratos que a destacaram no Instagram com o perfil @ex_miss_febem, nome inspirado no verso de “Kátia Flávia”, de Fausto Fawcett.
Ao se apropriar da rede como plataforma de produção, a artista de 33 anos chamou a atenção por questionar a construção midiática do corpo feminino, as relações entre periferia e Zona Sul e as opressões impostas à mulher, com uma visão cheia de ironia sobre o meio digital e os cânones das artes. Com cursos na EAV do Parque Lage e formação (inconclusa, ressalta ela) em História da Arte na UFRJ, Aleta passou pelo teatro, cinema — participou de longas de Domingos de Oliveira e do documentário “Jogo de cena”, de Eduardo Coutinho — até encontrar seu espaço na arte contemporânea.
Trabalhando como assistente, arte-educadora e em galeria, foi com o perfil mantido entre 2015 e 2017 (a conta original foi excluída após ser denunciada como “imprópria”) que a artista rompeu as barreiras do circuito, em obras como “Economia doméstica” (uma foto de moedas sobre os seus seios) e “Ascensão social” (em que aparece de biquíni em uma escada dobrável), realizadas em sua casa e nos arredores, em Bangu. Indicada ao Prêmio Pipa em 2017 e neste ano, ela amplia na individual na Gentil Carioca aspectos explorados no meio digital, como na instalação “Eletrodoméstica”, uma estrutura em forma de balança, em que ela equilibra seu peso com objetos como um fogão, aspirador de pó e uma batedeira.
— A autoimagem é uma forma de debater a representação da mulher, de como o Brasil exporta a sensualidade feminina ao mesmo tempo que impõe tantos padrões — comenta Aleta. — Mas é bem ambíguo, eu não deixo de ser contaminada pelo meio. Existe a crítica, mas eu também estou “sensuélen” ali.
Heroína mundana
Durante sua carreira, a Aleta diz ter acumulado um capital simbólico, sendo tema de pesquisas e artigos, sem, no entanto, ter vendido um único trabalho. O empurrão para a individual e o conselho para imprimir as imagens icônicas, evitando perdas no ambiente digital, veio de Adriana Varejão.
— Eu a conheci no Instagram e fiquei impressionada com a sofisticação do seu olhar e da sua linguagem — conta Adriana. — Me apaixonei instantaneamente. Ela já era uma artista completa. A única coisa que eu fiz foi ajudá-la na transição para uma mídia expositiva. Mesmo conhecendo bem seu trabalho me surpreendi com a força da exposição na Gentil. Ela parte da fotografia para uma diversidade de linguagens, com referências da história da arte, para criar uma epopeia do mundano, e ela sendo uma espécie de heroína.
Foi Adriana quem reforçou para o galerista Marcio Botner, sócio da Gentil Carioca, a qualidade do trabalho de Aleta, que já havia participado de duas coletivas na galeria, a “Abre alas” (2010) e o projeto “Xanadona” (2016). No dia 9, o espaço inaugurou as individuais de Aleta e “La larga noche de los 500 años”, da pintora Marcela Cantuária, outra jovem artista que cruza questões do feminino com um olhar sobre os cânones do meio. O próximo passo é levar obras das duas para a Miami Basel, principal feira de arte dos EUA, que abre dia 5 de dezembro.
— Para além de questões sociais e do feminino, as duas fazem releituras da história da arte com muita densidade — destaca Botner. — Cada uma a sua maneira, elas trazem temas urgentes da arte contemporânea em suas investigações sobre a imagem.
Após a inauguração da individual, Aleta volta a se dedicar ao projeto “Avenida Brasil 24h”, pelo qual ganhou a edição deste ano da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS, ao lado do fotógrafo Eustáquio Neves. A artista tem até maio para concluir a série, que será feita em quartos de motéis da Avenida Brasil.
— A Brasil é como o coração que bombeia o sangue para o corpo da cidade. Você sai de casa de manhã “arterial”, de banho tomado, e volta tarde da noite fedido, “venoso”. Sentia assim quando saía de Bangu de ônibus para estudar no Fundão e depois trabalhar na Gávea— compara Aleta. — Os motéis são os marcos na paisagem pela qual se mede a distância. Pensava: “Passei do Stop Time, estou quase no Centro”.
Para Thyago Nogueira, coordenador de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles e membro da comissão da bolsa, Aleta é uma “antena que resume várias questões-chaves da nossa relação com as imagens”:
— Ela tem uma perspicácia, um frescor de quem não está encaixado num padrão de mercado. Articula muitas coisas, desde a relação entre exposição e voyeurismo nas redes até um olhar sobre sua própria posição no circuito de arte.
Corpo sem autonoimia
Além da questão periferia-centro, Aleta traz outros temas autobiográficos às obras, como a experiência de ser mãe aos 18 anos. A luta pelos direitos reprodutivos está estampada na galeria, na obra “Marque um x para cada aborto que você já fez”.
— O mural é uma forma de sair do armário, o aborto é um processo solitário. Ao mesmo tempo em que o corpo da mulher é tão consumido através de imagens, não temos qualquer autonomia sobre ele — observa.
Na abertura, a filha de 15 anos estava presente, com uma camisa com a inscrição “Sophia Valente, 2004/Cesariana/Dimensões variáveis”.
— Ela é total “fechamento”, tem um senso de justiça maravilhoso. Nem sei como seria ter tanta consciência assim na idade dela — comenta Aleta.