Cabelo | Obrigado, volte sempre
Iluminações
Muitas vezes, falamos do ofício do artista pelo seu viés mais tradicional, isto é, a luta tenaz entre seu corpo e o tempo, entre sua mente e a forma, entre sua técnica e o suporte. Uma luta que, no interior de um espaço solitário como o ateliê, pode durar dias, semanas, meses. Nessa tradição do “trabalho”, o artista pode esperar pacientemente, como um mestre zen, que algo (a obra) ocorra no oco do tempo parado. Ou, pelo contrário, ele pode se arremessar, como um Sísifo alucinado, a um fazer fragmentado em múltiplas frentes, até que “um deus, um bicho, um homem” emerjam de seus esforços. Cabelo, por sua vez, prefere uma outra prática. Seu método é a captura veloz e incisiva do cotidiano. Sua postura é a de quem dá um bote nas coisas ao encontrar nos fragmentos o que se torna arte. Esse bote certeiro, esse gesto de mágico de rua quando tira a moeda de sua mão antes de você fechá-la, está no cerne desta exposição que a Gentil Carioca recebe.
Neste caso, o bote não foi dado com um gesto físico do seu corpo (quase sempre exposto como centro nervoso da poética de sua obra), mas sim com outra mão, uma mão-olho, que desenha através de uma lente. Uma mão que, ao segurar a câmera sem tripés ou nada além dos braços soltos, desenha em um fundo enigmático. Ao focalizar reflexos de luz em superfícies instáveis, Cabelo encontra o grão da cor e a velocidade da luz em uma dinâmica rara de se ver. Seus vídeos fazem com que essa mão-olho desenhe sutilmente essas luzes e cores, enquanto as formas abstratas se sucedem e nos arremessam em mundos insuspeitos para nossa visão comum.
O que temos portanto são pinturas e desenhos, feitos com iluminações escondidas na periferia do olhar. Eis aí o bote do criador, aquele que, mais do que ver, enxerga. Cabelo enxerga e mergulha com closes nas luzes porque desconfia, porque intui que as coisas são muito maiores do que imaginamos. Feito o bote, descoberta a porta de outra dimensão, tudo delira: a câmera, os olhos, as mãos, as cores, as formas. Investindo na certeza do imponderável, Cabelo desenha animações, cria seres que se reproduzem, testemunha nascimentos de mundos, observa absorto e em silêncio o fim de estrelas e galáxias.
Cabelo está em paz. O olho fixo, a mão solta, a mente concentrada na revelação desses microcosmos que se tornam macrocosmos, tudo isso deu ao seu trabalho uma limpeza rara em sua trajetória. Se geralmente ele ativa múltiplos sentidos do expectador, aqui ele concentra tudo em um close. Sem recorrer a excessos barrocos, sem urdir diversas camadas de materialidades e sem apresentar a palavra que engendra a poesia, ele nos apresenta uma dimensão mais poética do que nunca. Temos um artista em plena felicidade do encontro com seu objeto de desejo, nos convidando a adentrar uma frequência hipnótica. Ficaremos aqui, narcotizados pela luz, aguardando a próxima surpresa dessas composições fugazes.
Como um cinema de caboclo (na perfeita definição do próprio artista), os vídeos nos dão a oportunidade de nos aproximarmos da relação integral que Cabelo tem com outros mundos, outras vibrações, outras esferas. Sabemos que ele sempre apontou sua arte para as encruzilhadas de credos e cores. Exus, Budas, Shivas, Xamãs e entidades em geral pairam em suas performances, ocupam seus panos e nos seduzem em suas telas. Nos vídeos, o que vemos é toda essa força em seu estado mais fluido, puro, denso. Cabelo está leve. Sabe que na vida, como na arte, se trata de estar atento aos fragmentos do dia, aos objetos descartados, ao avesso das coisas. Só quem está prestes a dar um bote enxerga o reflexo da luz na água da panela e inicia uma viagem interior rumo ao dentro do dentro do dentro das formas. A mão-olho desenha, Cabelo sorri. O bote certeiro inaugurou um novo tempo.
Não se trata de dizer que vídeos são novidades. Desde “Big bang violeta”, 2001, das projeções em “Mianmar Miroir ( The Corridor ) , 2006 , de “La Mer” , 2009 ou de “Itamambuca dub” , 2014 , que o vídeo está lá, pensando junto com ele caminhos para se apropriar do que só seu olho enxerga e amplia para seu imaginário visual. Nesta exposição, porém, o vídeo não é exatamente filmar um pensamento previamente organizado em forma de obra. Aqui, trata-se de simplesmente registrar o movimento da matéria e seus desdobramentos descontrolados. Indo mais fundo nessa relação, os frames escolhidos por Cabelo criam um outro lugar para pensarmos a relação quase arquetípica da pintura e do desenho com a luz e a cor. Sua paleta é o inesperado, apesar do recorte cromático que nos empurra para mares e estrelas de rosas, azuis, amarelos, vermelhos e toda a gama de cruzamentos entre essas tonalidades.
Ao visitar Cabelo para falarmos sobre a exposição, conversamos animadamente sobre os vídeos e nossa alegria por estarmos vendo e falando sem parar sobre eles. Em um momento de total silêncio, absortos no escuro pela espera da próxima imagem, escuto a frase que poderia ser a única escolhida para falar desses trabalhos e que deixo aqui como um final sem fim, pois tudo está sempre, a cada dia, começando de novo: “É muita luz quando fecho os olhos”.
Fred Coelho, 2015